André
Lara Resende
29/07/2015
A
extensão e a profundidade da corrupção no Brasil atual causa
perplexidade até aos mais calejados observadores. Sempre fomos
complacentes em relação às pequenas
transgressões, sempre houve corrupção, aqui como em toda
parte, mas como foi possível chegar a um tal nível de desonestidade institucionalizada?
A gravidade da situação paralisa a política e a
economia. Ainda não está claro como sairemos da crise e o que virá a
seguir. Espera-se que o país mude para melhor, que a exposição da corrupção
na vida pública e empresarial, com a condenação dos envolvidos,
reduza acorrupção. O fim da impunidade é
fundamental para reduzir a criminalidade.
Gary
Becker, da Universidade de Chicago e ganhador do Nobel em
economia, foi o primeiro a utilizar o arcabouço conceitual da
microeconomia, com agentes racionais que maximizam utilidade,
para entender o processo de tomada de decisão em questões
não especificamente econômicas. Seus trabalhos pioneiros
procuravam explicar a tomada de decisão em relação a questões como quantos
anos estudar, qual o melhor momento para se casar e quantos
filhos ter. Segundo Becker,todo comportamento humano pode ser
entendido como uma avaliação de custos e benefícios. A decisão de cometer
um crime depende do que se tem a ganhar, comparado ao custo do
castigo ponderado pela probabilidade de ser pego. Se o benefício for maior
do que o custo estimado da punição, opta-se pelo crime. Simples
assim. O modelo tem enorme apelo, exatamente por ser simples, lógico, e dar
sugestões claras sobre a prevenção ao crime: deve-se aumentar
a probabilidade de que o criminoso seja preso e endurecer
as penas.
Feliz
ou infelizmente, as coisas não são bem assim. Os avanços da psicologia
comportamental demonstram que nossa tomada de decisão é mais
complexa, não se estringe a um cálculo de racionalidade
econômica. Bastam alguns segundos de reflexão para concluir que ao
longo da vida, mesmo durante um único dia, temos inúmeras possibilidades de
ser desonestos, com baixíssima probabilidade de ser pegos. Nem por
isso somos sistematicamente desonestos. Ao contrário, o padrão do ser
humano é ser honesto, respeitar a lei e os códigos de ética da
sociedade. A desonestidade, ao menos a desonestidade consciente e
deliberada, é a exceção.
Os
trabalhos recentes de Dan Ariely, professor da Universidade de Duke nos
EUA, chegam a resultados interessantes e até certo ponto
surpreendentes em relação à desonestidade. A partir de experiências,
muito engenhosamente formuladas, com diferentes grupos de pessoas, a
maioria delas alunos universitários americanos, Ariely conclui que
a desonestidade não é uma questão de custo e benefícios. Seus experimentos
mostram que não há relação entre o valor do que se tem a ganhar e a
desonestidade num grupo. Também não há relação entre a probabilidade de
ser pego e a desonestidade. São resultados que contradizem
frontalmente a teoria do cálculo racional como fundamento para a
opção pela honestidade ou pela desonestidade.
É
claro que não se é de todo insensível aos custos e benefícios da
desonestidade. Especialmente os desonestos contumazes, aqueles que
fazem da desonestidade um meio de vida, levam em conta os riscos associados à
atividade. Mas para a maioria das pessoas, que se percebem como honestas, não
se trata de um cálculo racional. Estamos todos dispostos a incorrer em
pequenas infrações, pequenas desonestidades, desde que as consideremos
suficientemente irrelevantes para não arranhar nossa percepção de
que somos honestos. Queremos nos perceber e ser percebidos como
pessoas honestas, mas estamos dispostos a transgredir, desde que a transgressão
nos permita manter a autoestima.
Os estudos mostram
que as pessoas são menos desonestas quando são lembradas
das leis ou dos códigos de ética. O grau de
desonestidade depende daquilo que é percebido como flagrantemente
desonesto, assim como do grau de tolerância em relação à desonestidade.
Onde as infrações de trânsito, como estacionar em local proibido, circular
pelo acostamento, são comuns e disseminadas, quem as comete não se percebe como
desonesto. Por isso mesmo, são mais frequentes.
A propensão
a agir incorretamente, depende também da nossa capacidade de racionalizar.
Se formos capazes de justificar a desonestidade, somos muito mais
propensos a agir de forma inapropriada. Isso vale tanto
para atos mais corriqueiros de incorreção, como também para
os mais graves. Roubo, assaltos, até mesmo assassinatos, podem
ser cometidos de forma fria, por pessoas que se consideram honestas,
desde que em nome de uma causa. O caso de políticos que roubam para
o partido, ou para financiar campanhas eleitorais, nunca para o
seu enriquecimento, é exemplar da necessidade
de racionalização. Os estudos mostram que quando a
desonestidade pode beneficiar pessoas do nosso grupo, ou até
mesmo desconhecidos, a propensão à desonestidade aumenta. Uma
vez encontrada a justificativa nobre, a racionalização, é possível
ser desonesto e manter a autoestima. É o efeito Robin Hood, mas
uma vez rompida a barreira psicológica,
passa-se mais facilmente para a desonestidade aberta. Quando
passamos a nos ver como desonestos, perde-se o pudor. Se este for o
comportamento disseminado entre nossos pares, tudo se torna ainda mais
natural.
Queremos
ser honestos, mas a propensão para a desonestidade está em todos nós.
Mais do que um cálculo de custos e benefícios, o que nos
restringe são os valores de nossa comunidade. Se no meio onde
vivemos a incorreção é aceitável, insuficiente para arranhar
nossa percepção de que somos honestos, somos mais propensos à
desonestidade. Essa é a razão pela qual povos diferentes se comportam
de forma diferente, ainda que diante dos mesmos incentivos e
riscos em relação a um comportamento questionável.
Uma
história curiosa, triste para nós brasileiros, ilustra bem como há
comportamentos distintos diante da certeza da impunidade. Até alguns anos
atrás, a lei dava aos diplomatas estrangeiros, lotados nas Nações Unidas, a
isenção de pagamento das multas de estacionamento na cidade de Nova
Iorque. A cidade, porém, nunca deixou de emitir as multas. Como não
precisavam ser pagas, não havia sanção para os diplomatas que estacionassem
em locais proibidos. Um estudo mostrou que, ao longo de cinco anos, os
diplomatas suecos e canadenses não tiveram multas, os alemães tiveram uma multa
per capita, os italianos 15, e os brasileiros 30 multas por
diplomata. Se serve de consolo, a média
dos diplomatas kuaitianos foi de 246 multas.
A
certeza da impunidade não leva todos a
ser desonestos. A referência cultural conta. Os diplomatas suecos
não são menos racionais do que os brasileiros, mas optam pela correção.
Optam por não levar vantagem, mesmo quando não há punição para o
comportamento incorreto. Há algo na cultura de certos povos, o que
se poderia chamar de Capital Cívico, que
faz a diferença. Na definição dos que cunharam o termo,
o Capital Cívico é o estoque de crenças e valores que estimulam
a cooperação entre as pessoas. Os entusiastas dos mercados não
se cansam de defender a importância da competição e da
meritocracia, mas os que entendem do riscado sabem que na base
de uma economia de mercado, antes de tudo mais, está a confiança e
a cooperação. Vale a pena ouvir o que tem a dizer a
respeito Kenneth Arrow, prêmio Nobel de economia. Seus
trabalhos, em parceria com Gerard Debreu, formalizaram o chamado Modelo
de Equilíbrio Geral, de onde são deduzidos os corolários de eficiência dos
mercados competitivos: “Virtualmente toda transação comercial tem
em si um elemento de confiança. Pode-se dizer, de forma plausível,
que muito do atraso econômico no mundo deve-se à falta de confiança mútua”.
Nas
sociedades onde o Capital Cívico é baixo, impera o que
Edward Banfield, que foi professor da Universidade de Harvard, chamou de
“ amoralidade de laços familiares”. Com base na sua
experiência num pequeno vilarejo do sul da
Itália, Banfield procurou entender as razões do atraso da
região. Concluiu que a resposta estava na obsessão com que seus
habitantes dedicavam-se exclusivamente aos interesses de
suas famílias. Incapazes de cooperar, até mesmo com os seus vizinhos, os camponeses
restringiam-se ao cultivo de suas pequenas propriedades. Ficavam
assim impossibilitados de se beneficiar dos ganhos de
produtividade da escala e da cooperação. Esse tipo de
comportamento é auto reenforçante, pois onde todos
desconfiam de todos e só estão preocupados com os seus próprios
interesses, a desconfiança tem razão de ser. Não se pode superestimar
a importância da confiança nas relações econômicas e
sociais. A confiança importante para o bom funcionamento da
sociedade é a confiança nos desconhecidos. É a confiança
naqueles que não conhecemos pessoalmente que permite estabelecer
contatos, desenvolver os mercados e a cultura.
Pesquisas, sobre
valores e atitudes em diferentes países, costumam perguntar aos
entrevistados se a maioria das pessoas merece confiança, ou se ao
contrário, é preciso tomar cuidado ao se relacionar com elas. Mais
uma vez o Brasil fica mal na fita. Enquanto na Suécia, quase 70 por
cento dos entrevistados respondem que os outros são dignos de confiança,
no Brasil, menos de 10 por cento consideram que as pessoas são
confiáveis. É sempre possível argumentar que os brasileiros
confiam menos nos outros porque nos Brasil a justiça é falha, há
menos possibilidade de ser punido, logo todos são efetivamente mais
propensos a ser desonestos. Haveria assim uma lógica no fato de por aqui
se confiar menos nos outros, estaríamos de volta à racionalidade do modelo
de Garry Becker.
Acontece
que a confiança nos outros, o grau de confiança básica, difusa numa sociedade,
não é simples consequência do bom funcionamento da justiça. Há, com
certeza, correlação entre as duas coisas, mas é o sentido da
causalidade não é claro. Assim como
a justiça eficiente contribui para a confiança, mais
confiança leva ao melhor funcionamento da justiça. A
confiança e a propensão a cooperar não
decorrem exclusivamente dos mecanismos legais de prevenção e
punição à desonestidade. São traços culturais, forjados ao longo da
história, reforçados pela experiência de cooperação bem sucedida. Constituem um
ativo de longo prazo, que não se adquire da noite para o
dia. Como todo traço cultural, são preconceitos, tanto positivos
quanto negativos, que não são facilmente
revistos. Um exemplo da longa inércia a ser vencida para a acumulação
do Capital Cívico, da persistência das feridas na confiança entre
membros de uma sociedade, para o qual Luigi Zingales chama
atenção, é o fato de que até hoje, mais de um século e meio depois do
fim do tráfego de escravos, há significativas diferenças entre as etnias
na África. Aquelas que tiveram pessoas capturadas e traficadas como
escravos, muitas vezes por membros de suas próprias tribos, até hoje desconfiam
de tudo e todos.
A
construção do capital cívico é um longo percurso. A recíproca não é,
infelizmente, verdade. A confiança e a capacidade de colaborar,
urdidas lentamente ao longo da história, podem ser muito rapidamente
destruídas. Uma vez perdidas, é preciso recomeçar do zero, refazer toda a longa
história de acumulação de capital cívico, de confiança e de
cooperação. Não é fácil, pois a desconfiança leva
à desconfiança, termina por justificar a falta de confiança.
É um círculo vicioso duro de ser rompido. A melhor forma
de fazer evoluir o capital cívico é não permitir
que ele se deteriore.
A
forma como a população avalia o Estado e suas instituições é
uma boa aproximação do capital cívico. Onde o capital cívico é alto, o
Estado é visto como um aliado confiável. Onde o capital cívico é
baixo, o Estado é percebido como um criador de dificuldades para
todos e de vantagens para seus ocupantes. Mais uma vez, o
processo é auto reenforçante. Se o Estado
é percebido sendo como ocupado por desonestos
pautados pelos seus próprios interesses, os
bem intencionados evitam a vida pública, o que termina por dar
razão à desconfiança. Dada a visibilidade dos políticos
e a necessidade de se lidar cotidianamente com as
autoridades, o Estado corrupto é um poderoso fator de erosão
do capital cívico. Nada mais corrosivo da confiança e do espírito
público do que a exposição diária a um Estado ineficiente e patrimonialista.
Assim
como o mau Estado destrói o capital cívico, as boas
instituições são imprescindíveis para a sua preservação. Os
estudos de Ariely sugerem que o grau de desonestidade de uma
comunidade tem características parecidas com a de uma infecção. A desonestidade
pega e se alastra. Basta que uma única pessoa se comporte de forma
flagrantemente desonesta, para que o grau de desonestidade de um grupo de
alunos universitários, submetidos às suas engenhosas experiências, aumente
significativamente.
Se uma
única pessoa, um desconhecido, é capaz de aumentar a
desonestidade dos demais num grupo de universitários, fica claro que a
desonestidade dos governantes tem grande impacto sobre o grau de
desonestidade do país. Existe um “efeito demonstração” da desonestidade,
sua capacidade de se alastrar e de infeccionar a sociedade como um todo.
Esta é a razão pela qual é importante reduzir
a frequênciados pequenos atos de transgressão, das pequenas
desonestidades aparentemente inofensivas. A política de “tolerância
zero” em relação ao pequenos delitos, adotada pela polícia de Nova
Iorque, contribuiu para a dramática redução da criminalidade na
cidade. Pequenas infrações podem parecer inócuas, mas contribuem para
criar o ambiente propício às mais graves.
Anos
atrás, quando eu ocupava um cargo público, um político com
quem eu tinha relações pessoais queixou-se comigo da corrupção de
pessoas ligadas à sua área. Sugeri que ele fizesse uma denúncia pública.
Disse-me que jamais faria isso, porque o impacto para o descrédito da
política seria gravíssimo. Intuitivamente, ele estava dando expressão
ao efeito demonstração. É evidente que o argumento é falacioso,
na verdade uma racionalização para não se sentir compactuando com a
corrupção sem incorrer nos custos de denunciar seus pares. A
concordar com ele, para evitar a contaminação da
sociedade, toda sujeira deveria ser empurrada para debaixo do
tapete. Isso não significa que não haja uma contradição a ser
resolvida: para reduzir a desonestidade, não se pode
esconder a corrupção, mas a sua divulgação, através do
efeito demonstração, contribui para o aumento da
desonestidade.
A
condenação dos envolvidos na operação Lava Jato deverá reduzir a percepção
de impunidade. De acordo com o modelo de racionalidade da
desonestidade, haverá menos pessoas decididas correr o risco. Para os que
já cruzaram a barreira, não há dúvida: pensarão duas vezes antes
de retomar as práticas a que estavam habituados. Mas para a grande
maioria da população, para os que prezam a honestidade, que não se
baseiam num cálculo racional de custos e benefícios, o efeito
demonstração terá um impacto negativo. A impressão de que o governo, os
políticos e os empresários são desonestos, aumenta a tolerância com a
desonestidade no dia a dia. Nas inúmeras pequenas oportunidades onde é
possível transgredir sem ser punido haverá maior propensão à
desonestidade. A impressão de que a desonestidade impera, ajuda à
racionalização do comportamento desonesto. Se todos são, ninguém
é. Por isso é importante ir até o fim, não deixar a impressão de que só
alguns foram punidos, que os mais espertos, como
sempre, escaparam.
Infelizmente, ainda
assim, não é inequívoco que o capital cívico do país sairá fortalecido da
crise. É sempre possível que o impacto negativo do efeito
demonstração domine o impacto positivo do fim da impunidade. Essa
possibilidade é reforçada por mais um interessante resultado dos
estudos de Ariely. Quanto mais cansados, desanimados e deprimidos estamos,
mais propensos somos a ser desonestos. A honestidade aumenta a
autoestima e a baixa autoestima aumenta a desonestidade. A recessão
econômica e a depressão psicológica contribuem para o aumento da desonestidade.
Para
que o país saia melhor de tão grave e deprimente surto de desonestidade, para
que não passe à infecção generalizada, é importante condenar e
punir os culpados. Sem dúvida, mas não basta. É preciso, o quanto
antes, sair da crise, expurgar da vida pública os envolvidos, recuperar a
economia e dar início a uma nova era. O que exigirá, antes de mais nada,
novas e exemplares lideranças, que ainda estão longe
de estar evidentes.
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